Goiânia – Instituições que recebem pessoas dependentes de substâncias psicoativas, como álcool e drogas, e que se internam por livre e espontânea vontade, as comunidades terapêuticas têm sido comumente ligadas a escândalos que expõem casos de tortura e castigo a internos. Existentes desde a década de 70, as comunidades vêm crescendo e se popularizando nos últimos anos.
Casos de humilhação, violência, tortura e algumas até com resultado morte foram registrados ao longo de 2023 em todo o país (como em Goiás, Rio de Janeiro e São Paulo), especialmente em instituições ligadas a igrejas.
Em Goiás, um caso chamou a atenção em 2023. Em setembro daquele ano, quase 100 pessoas foram resgatadas de chácaras administradas pelo pastor da Igreja Batista Vida Nova, Angelo Klaus, e a mulher dele, Suelen Klaus. Dependentes químicos, deficientes intelectuais e idosos viviam um verdadeiro horror dentro de um centro terapêutico comandado pelo casal, que foi preso e responde por tortura, maus-tratos e cárcere privado. Além dos religiosos, foram presos Jonas da Silva Geral, Jhonatan Alexandre Silva Santos, Francisco Carlos Lira Junior e Ruimar Marcio Silva Qualhato.
Cinco vítimas da Amparo Centro Terapêutico relataram em depoimentos a rotina de torturas e humilhações à qual eram submetidas nas instituições do casal, que funcionavam em chácaras na zona rural de Anápolis, a 55 km da capital goiana. Cerca de 50 pessoas foram resgatadas em um dos locais e 43, em uma segunda unidade. De acordo com os pacientes, eles não recebiam atendimento médico, e os pastores se mantinham distantes dos internos.
Nos relatos, as vítimas contam que os pacientes com deficiência considerados mais “problemáticos” eram amarrados, levavam banhos de água gelada, tinham suas roupas arrancadas e ficavam nus, como forma de castigo. Também ocorriam agressões físicas e verbais, inclusive com ameaças.
As famílias dos pacientes chegavam a pagar uma mensalidade de R$ 1,3 mil para o casal de pastores, conforme depoimentos e documentos anexados ao inquérito, no entanto, os centros não eram regularizados. Os familiares só podiam falar com os internos após 30 dias do início da internação. Klaus acompanhava esse momento do contato com parentes, para evitar que falassem mal do tratamento, de acordo com depoimento de uma vítima.
Os internos não tinham acesso a toda a chácara e ficavam trancados nos quartos entre as 19h e as 8h. Um deles disse que dividia o quarto com outras 20 pessoas, que usavam o mesmo banheiro. O vaso sanitário vivia entupido, e o cheiro era insuportável.
As refeições, segundo esse interno, era um pedaço de cuscuz e chá no café da manhã. Já no jantar e no almoço, a base era arroz e macarrão, sendo salsicha e frango as opções predominantes de proteína. Raramente havia carne vermelha. As pessoas resgatadas das duas clínicas foram levadas para um ginásio de Anápolis, onde passam por uma triagem. Nove idosos tiveram de ser hospitalizados por causa de infecções graves e desnutrição.
Humilhação e nudez
Em uma área rural no Entorno do Distrito Federal, homens jovens e idosos que sofriam com a dependência química foram submetidos a humilhações e sessões de tortura que resultaram até em mortes.
Vídeos chocantes, aos quais o Metrópoles teve acesso, mostram pacientes sendo obrigados a entrar na água nus de madrugada, dormir no chão em meio à sujeira e ficar amarrados em posição semelhante à que escravos eram punidos no Brasil há mais de 130 anos.
Todos esses episódios cruéis se passavam dentro da Clínica de Reabilitação Restituindo Vidas, situada na região das Chácaras Marajoara, em Luziânia (GO). E, apesar de boletins de ocorrência registrados na Polícia Civil de Goiás (PCGO), o espaço permanece aberto e recebendo novos pacientes.
A reportagem conversou com algumas das vítimas que sobreviveram ao martírio na clínica de reabilitação, que, segundo a Federação Nacional de Comunidades Terapêuticas (Fenact), funciona de forma clandestina e é administrada por Tiago de Morais Araújo, que se apresenta como enfermeiro.
A rotina dentro da casa era de dor e sofrimento. A lista de supostos crimes cometidos por Tiago e seus funcionários é extensa. Ele é acusado de bater, humilhar e permitir circulação de drogas no local.
Ainda de acordo com relatos de “sobreviventes”, não era permitido manter qualquer tipo de contato com a família, e havia a prática de dopagem com medicamentos sem prescrição médica. Em casos mais extremos, muitos, inclusive, disseram passar fome, pois as refeições eram rigidamente controladas por Tiago e seus monitores.
Trabalho escravo
Em agosto de 2023, sete pessoas em situação de trabalho análogo à escravidão foram resgatadas de uma comunidade terapêutica, em Cosmos, na zona oeste do Rio. O pastor responsável pelo local, que supostamente realiza atendimento a dependentes químicos, intermediava a mão de obra das vítimas a mercados locais e ficava com todo o pagamento.
Segundo depoimento das vítimas, eles trabalhavam sem nenhum registro formal, além de serem obrigados a ofertar um dízimo de 10% no valor do salário, que era dividido pela metade com o pastor.
Um dos trabalhadores resgatados relatou que recebia apenas R$ 50 pelos serviços, mas o dinheiro ficava retido com o pastor, sendo liberado apenas para comprar itens básicos, a cada 15 dias.
Com a participação do Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro (MPT-RJ), da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego (SRTE) e da Polícia Federal, o resgate aconteceu após denúncias anônimas.
Morte com sinais de violência
Em Embu-Guaçu, na Grande São Paulo, no último mês de outubro, o dono do Centro Terapêutico Kairós, Ueder Santos de Melo, de 40 anos, foi preso após a morte de um paciente dentro da instituição. Onésio Ribeiro, de 38, que estava internado na clínica Kairós Prime, deu entrada em um hospital já sem vida, com sinais de violência pelo corpo. Cinco funcionários foram presos em flagrante acusados de agredir o paciente até a morte.
O caso foi a segunda morte registrada em 2023 na clínica de reabilitação. No primeiro episódio, que teria ocorrido no início do ano passado, outros três funcionários foram presos por envolvimento na morte de um paciente de 27 anos, também encontrado com marcas de violência.
O Centro Terapêutico Kairós, que possui unidades em Juquitiba e Embu-Guaçu, ambas na Grande São Paulo, entrou na mira da polícia após as mortes dos pacientes e denúncias de maus-tratos por parte dos funcionários.
Segundo uma testemunha, que era paciente na clínica, as agressões eram frequentes dentro da instituição. “Essa foi a única situação que deixaram [um paciente] amarrado. Nas outras vezes, eles simplesmente espancavam mesmo. Eu apanhei também, assim que cheguei, porque reclamei da comida”, afirmou.
Ao longo dos anos, as comunidades terapêuticas têm recebido cada vez mais dinheiro público, repassado por municípios, estados e pela União. Em 2019, do antigo Ministério da Cidadania, que era o responsável pelo programa de comunidades terapêuticas, saíram mais de R$ 81 milhões. Em 2020, o valor chegou a R$ 134 milhões, aumento de 65%. No mesmo período, na rede de atendimento psicossocial a dependentes de álcool e drogas do SUS, os chamados CAPS AD, o aumento foi de 11%.
Mais de 60% das comunidades terapêuticas contratadas pelo ministério da Cidadania em 2019 têm ligações diretas com grupos religiosos cristãos e/ou são presididas por sacerdotes, como padres, missionários e pastores. Na maioria dessas casas, práticas como leitura da Bíblia, cultos, missas e orações fazem parte do tratamento oferecido aos usuários de drogas.
Ligação com igrejas
De forma geral, as comunidades terapêuticas são instituições privadas, mas sem fins lucrativos, ancoradas no tripé trabalho, disciplina e espiritualidade. Dessa forma, a maioria delas está ligada a instituições religiosas, e as principais denúncias contra os locais envolvem torturas, conversão religiosa compulsória, trabalho forçado e análogo à escravidão.
Alguns dos centros cobram matrícula e mensalidade. Outros oferecem vagas gratuitas, financiadas com dinheiro público ou doações.
Conforme a Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas, o Brasil tem, atualmente, cerca de 80 mil pessoas acolhidas em instituições dessa natureza e cerca de 5 mil a 6 mil comunidades terapêuticas espalhadas por todo território nacional. Porém, apenas 300 são representadas pela entidade.
De acordo com a Secretaria da Saúde de Goiás (SES-GO), por meio da Superintendência de Vigilância em Saúde/Gerência de Vigilância Sanitária, as comunidades terapêuticas funcionam em regime de residência, cujo principal instrumento terapêutico é a convivência entre os pares. O período de internação e o programa de acolhimento das casas variam de instituição para instituição, mas, segundo estudiosos, todas partem do mesmo princípio.
“São instituições que não realizam terapêuticas que dependam de profissionais de saúde e não devem ser confundidas com clínicas de reabilitação, que são estabelecimentos assistenciais de saúde, com responsabilidade técnica de profissionais médicos”, disse a pasta.
Conforme a SES-GO, os requisitos normativos para o funcionamento das comunidades terapêuticas estão contidos na Resolução da Anvisa RDC nº 29/2011. Os locais devem ser regularizados nas vigilâncias sanitárias locais, devendo possuir alvará de licença sanitária.
Em Goiás, as comunidades regularizadas são inspecionadas quanto às condições sanitárias das instalações e ao procedimento e, conforme a secretaria, devem ter ainda projeto arquitetônico aprovado pela vigilância sanitária.
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